Estudo pioneiro do Projeto Golfinho Rotador mostra que rotadores adultos assumem a frente do grupo para enfrentar tubarões, cercar mergulhadores e reagir à aproximação de barcos e que a pressão do turismo ameaça essa organização
No silêncio entre uma onda e outra, quando o sol desponta em Fernando de Noronha, é possível ver algo mais do que saltos coreografados ou nadadeiras cortando a superfície. Existe uma vigília ali, silenciosa e estratégica, mantida por machos adultos de golfinhos-rotadores que assumem a função de sentinelas do grupo, comportamento batizado por pesquisadores do Projeto Golfinho Rotador como “de guarda”. Em meio a um arquipélago que luta para manter o equilíbrio entre o turismo e a conservação, esse papel protetor revela não só uma complexa estrutura social animal, mas um alerta urgente sobre os impactos da presença humana no ecossistema.
A descoberta, como relata o oceanógrafo José Martins, coordenador do projeto, que é patrocinado pela Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental, não foi provocada por hipótese anterior, mas emergiu da tentativa de compreender os padrões de comportamento da espécie. “Ao observarmos os rotadores fazendo atividades aéreas e tentando entender o que acontecia ao redor, percebemos que essas ações vinham quase sempre de machos adultos. Mais tarde, vimos que eram os mesmos indivíduos que enfrentavam tubarões, nadavam em direção a embarcações ou cercavam mergulhadores. Esses padrões se repetiam”, conta.
Esses comportamentos, inicialmente dispersos, passaram a formar um mosaico coerente ao longo de mais de três décadas de pesquisa, revelando uma organização que mistura vigilância, defesa e comunicação. O termo “comportamento de guarda” passou a designar a ação desses golfinhos machos adultos que, temporariamente, lideram o grupo protegendo os mais vulneráveis, principalmente fêmeas e filhotes.
Olhar atento
O detalhamento dessa função decorreu de múltiplas metodologias: observações fixas do alto do mirante com binóculos, mergulhos livres com os animais, embarques em botes com casco transparente e coleta de material genético por raspagem. As evidências são contundentes. Em 100 amostras genéticas colhidas de golfinhos nadando à frente dos botes, 73 eram machos. Em observações embarcadas, mais de 86% dos golfinhos identificados quanto ao sexo que nadavam junto às embarcações eram machos adultos.
De 33 mergulhos realizados na Baía dos Golfinhos, os primeiros indivíduos a serem avistados foram, em 88% dos casos, machos adultos. Atividades aéreas — saltos, giros e rotações no ar — também foram majoritariamente executadas por eles: em quase 8.600 registros desse tipo de ação em apenas 19 dias, mais de 97% foram realizadas por adultos, a imensa maioria machos.
Essas atividades, segundo Martins, vão além do espetáculo visual. “As ações aéreas fazem parte de um sistema de comunicação associativo. Dependendo do tipo de salto ou giro, os outros golfinhos interpretam como sinal para agrupar-se ou mudar de rota, geralmente diante de uma ameaça, como um tubarão ou a aproximação humana.”
Turismo e vigilância
Apesar da plasticidade social do golfinho-rotador, o aumento de embarcações e mergulhadores na região tem comprometido seriamente a eficiência desse comportamento de guarda. “Quanto mais tempo os barcos e mergulhadores perseguem os golfinhos, menos eles conseguem estar alertas à presença de tubarões, descansar, reproduzir e cuidar dos filhotes”, afirma Martins. Isso significa não só mais estresse e menor taxa de reprodução, mas também maior risco de predação e mortalidade infantil.
Ainda que não tenham sido registradas imagens de ataques de tubarões ocorrendo durante a interferência humana, o coordenador acredita que isso já tenha acontecido, especialmente diante do crescimento simultâneo de três fatores: a população de tubarões-tigre, o turismo desregulado e a busca cada vez mais invasiva por encontros com os golfinhos.
Diante disso, os dados reunidos ao longo dos anos pelo Projeto Golfinho Rotador contribuíram decisivamente para a formulação de políticas públicas de preservação em Noronha. Foram fundamentais, por exemplo, para a criação de áreas de exclusão, como a Enseada Entre Ilhas, além da proibição de mergulhos intencionais com golfinhos e da definição de limites para o tráfego de embarcações (barulho, velocidade e distância dos golfinhos).
Liderança compartilhada dos protetores
Ao contrário do que se imagina, essa função de guarda não é hierárquica nem permanente. Não há um líder fixo entre os rotadores. “A liderança é momentânea, e os golfinhos que estão de guarda assumem esse papel por um tempo, depois passam a realizar outras atividades. É uma liderança rotativa, baseada no estado físico, na experiência e na necessidade do grupo”, explica Martins. As fêmeas, por sua vez, raramente desempenham esse papel. “Só temos evidências de guarda entre machos. Isso não exclui a possibilidade de que, em grupos muito pequenos, alguma fêmea possa eventualmente assumir esse tipo de comportamento, mas é raro.”
A lógica social desses animais permite que grandes grupos convivam com fluidez, sem depender de vínculos parentais para a proteção dos indivíduos mais frágeis, o que reforça a importância ecológica e evolutiva desse sistema de guarda.
Ao longo de sua história, o Projeto Golfinho Rotador já monitorou mais de 2 milhões de visitas de golfinhos à ilha. O impacto dessa pesquisa ultrapassa os limites da ciência e se projeta como ferramenta de educomunicação ambiental, contribuindo com campanhas de sensibilização para turistas e prestadores de serviço.
“Divulgar que a permanência excessiva dos barcos com os golfinhos afeta diretamente a reprodução e o equilíbrio social da espécie é uma forma poderosa de sensibilizar o público. Queremos que o turismo de observação seja sustentável, que os golfinhos continuem vindo a Noronha e que o arquipélago continue sendo um santuário de vida marinha”, finaliza Martins. Enquanto isso, os golfinhos seguem pulando, vigiando, girando e cuidando dos seus. Uma coreografia silenciosa de resistência, numa das mais belas paisagens do planeta.
Sobre o Projeto Golfinho Rotador
Desde 1990, o Projeto Golfinho Rotador atua em Fernando de Noronha com pesquisa, educação ambiental e conservação marinha. O projeto é patrocinado pela Petrobras, por meio do Programa Petrobras Socioambiental, e é uma das mais duradouras iniciativas de proteção da espécie no Brasil, sendo referência na aplicação da ciência à conservação.