O crescimento da atividade turística no arquipélago está gerando impasses socioambientais que coloca em risco o delicado equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a biodiversidade
O mar de Fernando de Noronha guarda segredos que poucos escutam. Nas primeiras horas da manhã, quando os raios de sol tingem de dourado a Baía dos Golfinhos, um espetáculo acontece: centenas de golfinhos-rotadores chegam das águas profundas do Atlântico. Movem-se em uma dança tranquila, deslizando pela superfície, mergulhando em sincronia e repousando no azul cristalino. Para esses animais, aquele é um santuário – um local de descanso após longas jornadas de caça no alto-mar. No entanto, a crescente atividade humana e o turismo desordenado vêm ameaçando esse refúgio natural, colocando em risco a tranquilidade e a segurança da espécie.
Nos últimos anos, Fernando de Noronha tem sido palco de um fenômeno que encanta e preocupa na mesma medida: o aumento expressivo do turismo náutico. Entre 2021 e 2024, a ilha recebeu, em média, 128 mil visitantes por ano – um crescimento de 29% em relação ao período anterior. Em 2024, o arquipélago atingiu 131,5 mil visitantes, aproximando-se do limite anual de 132 mil turistas imposto pelas autoridades ambientais. O aumento reflete a popularidade crescente do destino, com 11 mil visitantes a mais em relação ao ano anterior.
Esse crescimento acelerado, no entanto, gera um dilema cada vez mais evidente: como conciliar o desenvolvimento do turismo com a conservação ambiental? Empresários do setor turístico têm pressionado as autoridades para a revogação do limite mensal de visitantes, argumentando que a medida restringe o potencial econômico da ilha. Por outro lado, ambientalistas alertam que a flexibilização dessa norma pode trazer impactos irreversíveis à biodiversidade local, especialmente para espécies vulneráveis como os golfinhos-rotadores.
Muitos turistas que chegam a Noronha têm um objetivo claro: ver de perto os golfinhos-rotadores, criaturas carismáticas que se tornaram um dos maiores símbolos do arquipélago. O problema é que, para garantir essa experiência única aos visitantes, embarcações e mergulhadores acabam desrespeitando as regras estabelecidas, aproximando-se de forma inadequada e colocando os animais sob estresse constante. Apenas em 2022, um estudo registrou 12.986 interações entre barcos e golfinhos na região da Baía de Santo Antônio e Entre Ilhas, sendo que mais de 88% dessas interações envolveram algum tipo de manobra inadequada, como embarcações entrando diretamente no meio do grupo e fragmentando sua formação. Essas interferências afetam o padrão de deslocamento dos animais, alteram sua rotina e comprometem seu descanso.
José Martins da Silva Júnior, oceanógrafo e coordenador do Projeto Golfinho Rotador, que conta com patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental, há mais de três décadas estuda a espécie em Noronha, alerta para mudanças significativas no comportamento dos golfinhos diante da intensa atividade turística. “Nos últimos anos, temos observado um aumento no comportamento de guarda entre os machos adultos. Isso significa que, em vez de descansarem, estão gastando mais energia protegendo o grupo, principalmente os filhotes. O tempo que deveria ser usado para repouso e reprodução está sendo consumido por um estado constante de alerta”, explica. Esse desgaste energético pode ter consequências graves, tornando os golfinhos mais vulneráveis a predadores naturais, como tubarões, e comprometendo sua capacidade reprodutiva. Além disso, o estresse provocado pelo excesso de interação humana pode gerar impactos de longo prazo, como a alteração dos hábitos migratórios ou a redução da taxa de sobrevivência dos filhotes.
Termômetro do oceano
Os golfinhos-rotadores de Noronha não são apenas um espetáculo para os olhos. Eles desempenham funções ecológicas essenciais, sendo predadores de pequenos peixes e lulas, presas de tubarões e importantes agentes na dispersão de nutrientes marinhos, beneficiando a biodiversidade local. Além disso, são considerados bioindicadores ambientais, ou seja, sua presença e comportamento refletem diretamente a saúde dos ecossistemas oceânicos. “Golfinhos são como sentinelas do mar. Quando algo no ambiente muda – seja por poluição, excesso de turismo ou mudanças climáticas –, eles estão entre os primeiros a sentir e responder”, destaca José Martins. Por meio do monitoramento contínuo, pesquisadores analisam não apenas o comportamento dos golfinhos, mas também sinais de contaminação química, ingestão de microplásticos e outros fatores que indicam a qualidade ambiental do arquipélago.
Desde 1990, o Projeto Golfinho Rotador tem desempenhado um papel essencial no estudo e conservação da espécie em Fernando de Noronha, utilizando uma série de metodologias avançadas para analisar o comportamento dos golfinhos e avaliar os impactos ambientais na região. Entre as técnicas empregadas estão a observação de ponto fixo, embarcado e em mergulho, permitindo o estudo detalhado da ocorrência, distribuição e comportamento dos golfinhos; a coleta de material biológico, incluindo amostras de pele e músculos para análise genética da população; e a coleta de fezes e vômitos, que fornece informações valiosas sobre a qualidade ambiental da região e os impactos da contaminação por plásticos e substâncias químicas. Estudos bioacústicos também desempenham um papel crucial, ajudando a entender como o ruído das embarcações afeta a comunicação dos golfinhos.
Ao longo de 34 anos de atuação, o Projeto Golfinho Rotador monitorou um total de 2.257.973 visitas de golfinhos da espécie em Fernando de Noronha, um número impressionante que demonstra a presença constante desses cetáceos no arquipélago. Além do monitoramento científico, as atividades de formação profissional e sensibilização ambiental atingiram 4.289 moradores locais e 432.958 visitantes.
O banco de dados acumulado ao longo de mais de três décadas tem sido fundamental para embasar políticas públicas de conservação e regulamentação do turismo sustentável em Noronha. O projeto participa ativamente da elaboração de documentos de gestão pública, como os Planos de Manejo da APA-FN, os estudos de capacidade de suporte da ilha e o Programa de Sustentabilidade Noronha+20. Além disso, tem sido peça-chave na formulação e execução de normas que normatizam a interação de embarcações e mergulhadores com os animais que são alvos do turismo, como golfinhos, baleias, tubarões e aves, estabelecendo diretrizes claras para minimizar os impactos destas atividades turísticas. No âmbito federal, o projeto atua em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), contribuindo para políticas de proteção dos cetáceos e da biodiversidade marinha no Brasil. Também colabora com iniciativas internacionais, como a Comissão Baleeira Internacional (CIB) e a International Committee on Marine Mammal Protected Areas (ICMMPA), compartilhando dados e estratégias para a preservação dos mamíferos aquáticos.
Como observar sem prejudicar?
A boa notícia é que é possível desfrutar da experiência única de observação dos golfinhos sem comprometer seu bem-estar. O turismo responsável é essencial para garantir que a presença humana não interfira negativamente no comportamento natural desses animais. Para isso, existem diretrizes quanto a interação de pessoas e embarcações que devem ser seguidas quando os golfinhos estiverem por perto, como não nadar ou mergulhar (livre, rebocado ou autônomo) intencionalmente com golfinho; não perseguir em natação, mergulho ou embarcado os golfinhos; não tentar ou toca-lós com os pés, mãos ou qualquer objeto; não produzir ruídos excessivos, tais como música e gritaria; pescar, jogar na água qualquer detrito, substância ou material; aproximar-se de um indivíduo ou grupo que já esteja submetido à aproximação de, no mesmo momento, de pelo menos, duas outras embarcações.
A adoção dessas práticas não apenas preserva os golfinhos, mas também assegura a sustentabilidade do turismo em Noronha, permitindo que futuras gerações, de prestadores de serviço e de visitantes, possam continuar desfrutando desse espetáculo natural. O Projeto Golfinho Rotador incentiva empreendimentos turísticos a adotarem medidas sustentáveis, promovendo a formação de condutores de turismo para a observação da fauna marinha, bem como a formação de empresários dos setores de mergulho, hotelaria, restaurantes, bares e barracas de praias em gestão sustentável. “Temos que lembrar que Noronha não é só um destino turístico, mas um patrimônio natural da humanidade. Se não preservarmos os golfinhos-rotadores, estamos afetando toda a biodiversidade marinha do arquipélago”, reforça José Martins.
Com mais de 67 mil horas de pesquisa, o Projeto Golfinho Rotador consolidou-se como uma referência na preservação da espécie e na busca por estratégias sustentáveis para o convívio harmonioso entre humanos e a biodiversidade marinha de Noronha. O desafio agora é garantir que os esforços de conservação sejam ampliados e que o turismo sustentável seja efetivamente implementado, para que o santuário dos golfinhos-rotadores continue sendo um refúgio seguro e protegido, onde esses incríveis animais possam descansar, se reproduzir e cumprir seu papel essencial no equilíbrio do ecossistema oceânico.
Mergulho com golfinhos não é permitido
A legislação brasileira é rigorosa quando se trata da preservação de cetáceos, como baleias e golfinhos. A Lei nº 7.643, de 18 de dezembro de 1987, proíbe expressamente a pesca e o molestamento intencional desses animais, o que inclui a prática de mergulho ou natação com eles. De acordo com essa normativa, qualquer interação forçada, seja por aproximação excessiva de embarcações ou tentativas de contato direto, pode ser considerada crime ambiental, sujeita a penalidades.
O oceanógrafo José Martins, coordenador do Projeto Golfinho Rotador, reforça que essa legislação existe para garantir a conservação dos golfinhos e minimizar os impactos do turismo sobre a biodiversidade marinha. “O mergulho intencional com os golfinhos não é permitido. “Nós não queremos que haja multas, queremos que as pessoas compreendam a importância da legislação e respeitem as normas, sejam moradores, prestadores de serviço ou turistas. Quando acontece uma notificação ou uma multa, significa que todo o sistema perdeu: o meio ambiente foi impactado, os golfinhos foram perturbados, o infrator será penalizado e os órgãos ambientais precisam realizar um processo burocrático para justificar a infração. A legislação de proteção aos golfinhos simplesmente pede respeito a eles em um nível que qualquer um de nós gostaríamos de receber em nossas casas”, explica Martins.
Segundo ele, o objetivo do projeto é justamente propiciar a experiência dos visitantes observarem os golfinhos, dos ilhéus gerarem renda no turismo de observação e que esta experiência seja um agente de sensibilização quanto às necessidades de conservação do Oceano.
O desafio para Fernando de Noronha é claro: conciliar o crescimento do turismo com a conservação ambiental. O destino precisa garantir o respeito aos golfinhos, pois, sem ele, não haverá futuro digno para um dos maiores patrimônios naturais do Brasil.